Quebrando o Silêncio

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A violência doméstica e as leis brasileiras

A violência é um mal social doloroso com consequências devastadoras que se espraiam por todas as esferas da vida do indivíduo, de difícil e às vezes de impossível reparação física ou emocional, sendo a violência doméstica um gravíssimo problema das sociedades modernas, que não encontra divisas, eis que atinge qualquer classe social, idade, religião, raça, […]


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A violência é um mal social doloroso com consequências devastadoras que se espraiam por todas as esferas da vida do indivíduo, de difícil e às vezes de impossível reparação física ou emocional, sendo a violência doméstica um gravíssimo problema das sociedades modernas, que não encontra divisas, eis que atinge qualquer classe social, idade, religião, raça, etnia, grau de escolaridade e gênero.

No Brasil, a nossa Carta Magna, a Constituição Federal, é verdadeira guardiã de todos os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana consagrados por este texto legal que traduz as aspirações mais inalienáveis do indivíduo, arrimo de todos os direitos, tutela de todas as liberdades, não deixando dúvidas de que não carecemos de qualquer outra legislação, além da que ali se encontra fixada.

Toda e qualquer modalidade de violência é igualmente repulsiva e deve ser coibida fortemente pelo Estado, combatida pela sociedade e repelida pela família. Mas existem grupos, no seio da sociedade, que são, por sua qualidade natural, mais vulneráveis à prática da violência, como é o caso da criança, adolescente e mulheres que são comumente vítimas de violência doméstica, escolar, praticada por cônjuges, pais, colegas de classe e até por professores, violência que pode ser física, verbal e psicológica.

Apesar da proteção legal aos mais fundamentais direitos da pessoa humana, aclamados pela nossa Constituição Federal que dita padrões de condutas para uma diversidade de relações sociais, esta legislação carece de permanente vigilância por todo conjunto da sociedade, por suas dificuldades práticas, ainda de conquistas tímidas que devem se tornar desacanhadas vitórias na grande batalha para garantir o seu princípio maior, a dignidade da pessoa humana.

Cabe salientar que a Lei Brasileira avançou sobremaneira no combate a qualquer forma de tratamento desumano, desde quando promulgou a nossa Constituição de 1988, iniciando aqui com a proteção à criança e ao adolescente, através do seu artigo 227, parágrafo 4º., que estabelece ser “um dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à dignidade, ao respeito, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, devendo a lei punir severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.

A este dispositivo constitucional acima, se juntou a  Lei 8.069 de 13 de julho de 1990  que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta legislação somou sobremaneira e regulamentou a matéria. Dentre outros artigos, reza o art. 18, ser “dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

O mesmo estatuto regula de forma clara as medidas de proteção à criança e adolescente diante de quaisquer violações de seus direitos por ação ou omissão do Estado, da sociedade e dos próprios pais ou responsáveis, segundo o artigo 98 desse estatuto que assim dispõe:

 

Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:

I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

III - em razão de sua conduta.

 

Assim, do artigo 99 ao 102 do ECA, são fixadas, especificamente, para cada situação de violação ao direito da criança e adolescente, a medida de proteção cabível que deverá ser promovida pelo Estado e pela família, incluindo medidas extremas como a perda do poder familiar quando a violação for desencadeada pelos próprios pais ou responsáveis.

É importante destacar  que a denúncia deve ser iniciada no Conselho Tutelar, uma vez que ainda não foram criadas as Delegacias Especializadas que dariam a este tipo de violência, prioridade de apuração, devendo ser este um clamor da sociedade: a criação destas delegacias.

Infelizmente, o grande obstáculo é ainda o silêncio das vítimas, especialmente quando a violência é familiar, com sérias dificuldades probatórias, sendo importante alertar que os crimes contra crianças e adolescentes podem ser enquadrados desde simples crime de constrangimento especial previsto no art. 232 do ECA que é o de “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”, com pena de detenção de seis meses a dois anos, até  maus tratos nos termos do art. 136, do Código Penal ou tortura-castigo, inserida no inciso II, do art. 1º da Lei 9.455/97, importando registrar que todos os crimes contra a criança e o adolescente e suas penas se encontram nos artigos 228 ao 244 do ECA, sem prejuízo do que estatui o Código Penal Brasileiro em seus artigos 146 a 149 que trata dos crimes contra a pessoa, agravados quando praticados contra menores e ainda o artigo 217 do mesmo código, que trata dos crimes sexuais contra criança e adolescente.

Violência contra a mulher - Quanto à violência contra mulheres, além da proteção fundamental e geral à dignidade da pessoa humana e repulsa a tratamento violento, degradande e de tortura nos artigos 1º, inciso III e 5º, inciso III da Constituição Federal, o inciso 8º. do artigo 226 obriga o Estado a criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das rela��ões familiares,  despontando neste contexto, uma grande conquista legal das Mulheres no combate à violência, que foi a Lei 11.340 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, em homenagem a uma vítima de violência doméstica extrema que a levou quase à morte e condenou-a à cadeira de rodas.

A referida Lei estabelece os mecanismos de combate à violência praticada contra mulheres, embora com problemas de ordem prática, mas que significa um importantíssimo avanço na prevenção, punição e erradicação deste tipo de violência tão volumoso que se manifesta das mais variadas formas, desde a violência verbal, passando pela violência psicológica, até as mais graves modalidades de violência física e morte das vítimas.

Não podemos deixar de ressaltar que a Lei Maria da Penha, em busca de maiores garantias possíveis à punição do agressor, alterou o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execuções Penais, artigos 313, 61 e 129 e o 152, respectivamente, no que diz respeito à matéria, trazendo mudanças substanciais relacionadas à exacerbação da pena e celeridade na sua aplicação, não descabendo lembrar a importante novidade trazida pela referida Lei que prevê a Criação de Juizados Especiais de Mulheres, não descabendo lembrar ainda a existência de Delegacias Especializadas no atendimento de Mulheres, sendo a primeira delas, criada pelo Decreto Paulista n. 23.769  de 1985, uma grande conquista nessa luta.

A lei Maria da Penha não se restringe à punição de um crime de pequeno potencial ofensivo praticado contra uma mulher, não é apenas para coibir uma agressão física contra a esposa ou namorada, é uma conquista  das mulheres que abrange toda sorte de violência, de qualquer natureza e com previsão de soluções rápidas, possibilitando que agressores de mulheres no âmbito doméstico ou familiar sejam presos em flagrante ou tenham sua prisão preventiva decretada, não podendo estes agressores ser punidos com penas alternativas, tendo sido, ao contrário, aumentado o tempo máximo de detenção previsto de um para três anos. Esta lei prevê ainda medidas que vão desde a saída do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação da mulher agredida, até assistência médica, psicológica e de manutenção da mulher em local seguro e desconhecido do agressor.

 

O que importa, essencialmente, à validade e cumprimento das leis acima mencionadas, é a quebra do silêncio. É preciso ter coragem para denunciar e receber os benefícios da proteção da lei.

 

Damaris Kuo é advogada e presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/SP

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