A perda da inocência

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A perda da inocência

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Vítimas de abusos devem buscar auxílio psicológico para superar traumas

Engenheiro Coelho, SP... [ASN] Ela era uma menina “arteira”. Daquela que corria e sempre estava metida em alguma encrenca. Mas encrenca de criança. Quem nunca foi criança e conheceu os mais levados? Não era necessariamente maldade, coisa de criança. Mas ele achou que deveria dar uma lição. Ela merecia o castigo. E até hoje é castigada. O abuso dentro do banheiro masculino da escola marcou sua vida para sempre, assim como as palavras de baixo calão, as mesmas direcionadas a pessoas sem valor, que ouviu durante o ato. Até hoje ela se sente assim, inferiorizada, sem importância.

Ela não entendeu, mas também não disse nada. Era melhor ficar com o tapa que ele dera do que enfrentar a surra dos pais por ter arrumado confusão com a coleguinha. Ficou um tanto aliviada por ele não ter dito nada. Mas não fazia ideia do que aquela cena faria nos anos seguintes. Afinal, naquele dia, ela tinha só cinco anos e nada fazia sentido. Isso viria a acontecer muitos meses depois, quando concluiu que perdera a sua proteção, sua inocência.

Apesar disso, ela nunca disse nada a ninguém. Nem via motivo para fazê-lo. Isso ainda não a incomodava e não configurava nenhuma mudança brusca na sua vida, a não ser sua curiosidade por sexualidade. Ela cresceu e aquela era apenas uma memória sem nexo. Mas um dia, ao ver novamente seu professor de Educação Física, Maria* teve um sentimento forte de nojo e repulsa. Como um estalar de dedos, a cena do banheiro tomou forma e ela entendeu. Ele a reconheceu e isso a fez se sentir pior.

Consequências

Segundo a psicóloga Janete Cremonezi, conselheira do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), as vítimas de abuso passam a ter pensamentos distorcidos sobre si e as mais diversas situações cotidianas. Quanto mais cedo ocorre a agressão, mais distorções cognitivas sofre o indivíduo. “São essas deturpações que causam o sofrimento e acabam desenvolvendo fobias na pessoa com o passar do tempo”, afirma.

O que aconteceu à Maria é algo comum de se detectar em vítimas de abuso sexual. A sexualidade é mal compreendida e, portanto, mal empregada. O indivíduo passa a ter o comportamento sexual desenfreado, porém, quase sempre atrelado às condições de pensamento de abusado. Atualmente, apesar de entender melhor tudo que aconteceu, Maria ainda continua não se valorizando. Seus relacionamentos seguem sempre uma linha: namorados violentos, autoritários.

Janete explica que as vítimas podem desenvolver, além da sexualidade deturpada, outros distúrbios e fobias. Transtornos comportamentais e depressivos são facilmente identificados nos pacientes. O sentimento de culpa é um dos mais relatados. A vítima, mesmo quando entende o fato, pensa ter tido participação direta no ocorrido ou que fiz algo para merecer a agressão.

Perigo constante 

Segundo levantamento do Ministério da Saúde, em 2011 a violência sexual em crianças de 0 a 9 anos era o segundo maior mal característico nessa faixa etária, perdendo apenas para o abandono. Nesse ano foram registradas cerca de 14 mil notificações de violência doméstica, sexual ou física em crianças. Em 2012 o número de denúncias cresceu. O Disque Direitos Humanos recebeu 82.281 denúncias, um aumento de 71% em relação a 2011. Mas esse ainda é um número pequeno, comparado aos casos ocorridos. Em 2006 a Secretaria de Direitos Humanos (SEDH) divulgou que apenas 2% eram denunciados.

O tabu impede que as vítimas revelem o que aconteceu. Quase sempre preferem esconder por medo ou receio. Segundo a psicóloga, isso acontece porque, geralmente, o agressor é alguém próximo e que exerce algum tipo de autoridade sobre ela. Porém, o mais importante é quebrar esse pacto de segredo, romper o silêncio e incentivar ao tratamento psicológico. “O trabalho terapêutico possibilita a redução da sintomatologia e proporciona a elaboração de pensamentos funcionais em relação ao abuso sexual”, enfatiza Janete.

*Maria é o nome fictício. A fonte pediu para não revelar sua identidade. Os dados foram retirados de reportagens publicadas nos anos de 2006, 2011 e 2012. [Equipe ASN, Daiana Moreira]