Quebrando o Silêncio

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Resgate de si mesmo

O abuso sexual aprisiona e afeta a autoestima e a identidade da vítima. Conheça a história de um psicólogo que superou esse drama e hoje ajuda seus pacientes a fazer o mesmo.


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Foto: © Kevin Carden | Adobe Stock

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Pablo (nome fictício) me olha fixamente e fala com a segurança de quem conhece o assunto. Poucos imaginam que por trás de seus olhos azuis, intensos e inquietos, se esconde uma história tão terrível. Suas palavras fluem, cristalinas, rápidas, numa enxurrada de letras que disputam entre si para serem ouvidas. Há muito a ser dito.

Quando gesticula, tenta tornar as ideias mais claras. Mas isso não é necessário. O relato é real e contundente por si só: “Fui abusado sexualmente desde os quatro anos por um amigo da minha família. Na adolescência, outra pessoa fez o mesmo. Minha vida foi um inferno. Não tinha paz em lugar nenhum. Na escola, eu sofria bullying de todos por ter um jeito diferente dos demais garotos. Apanhava e minhas professoras nem percebiam. E eu não me defendia”, desabafa.

“Isso é outro dos motivos que geram abuso: você não se sente digno. E esse sentimento de indignidade o leva a pensar: ‘Se alguém abusa de mim, e os demais me batem, é porque eu mereço.’ E isso acaba crescendo: ‘Se alguém próximo, que supostamente deveria me cuidar, abusou de mim, então por que um estranho na escola não faria o mesmo?’ E foi isso que aconteceu comigo. Cresci com uma autoimagem totalmente distorcida, e também não tinha clara a minha orientação sexual. Isso era muito notável, e assim foi até o início da vida adulta.”

Essa é a história de Pablo, um cristão que hoje pode contar sobre esse capítulo de sua vida com segurança e paz. Graduado em Psicologia, exerce a profissão há mais de 20 anos. Hoje, como pai de família ele se sente feliz. No entanto, seu caminho foi mais longo do que isso.

“Como cristão, eu culpava a Deus por tudo o que acontecia comigo. Estava zangado com Ele. Minha aflição era tão forte que busquei uma fuga no que, equivocadamente, achava que me traria paz. Abandonei a fé e me refugiei no álcool e nas drogas. Comecei a ter um estilo de vida totalmente livre, inclusive no aspecto sexual”, detalha. “Isso trouxe consequências. Por exemplo, fui contagiado com HIV e provoquei um verdadeiro desastre em meu corpo e minha vida.”

Quando lhe pergunto se essa fuga ajudou a conter sua dor, ele responde com precisão: “Sim, momentaneamente. Você curte por um momento, e no outro dia se sente vazio, sem nada... Com a mesma culpa, com o mesmo ódio, pois era assim que eu vivia, com ódio de tudo e de todos: daqueles que abusaram de mim, da vida, de Deus. No entanto, Ele fez um milagre em mim. Não foi instantâneo, mas gradual.”

Hoje Pablo está convencido de que tudo o que viveu e suportou pôde ser direcionado para o bem. E reforça que isso o ajuda no tratamento que oferece a seus pacientes que foram vítimas de abuso. Sua triste experiência com esse tipo de violência acabou contribuindo no seu preparo profissional.

♦ O abuso que você sofreu ocorreu em um ambiente familiar. Em geral, é nesse contexto que acontece esse tipo de violência?
♦ Sim, na maioria dos casos. O abusador de menores age dentro do círculo familiar e raramente é um estranho que passa pela rua. Seja na América Latina ou em outras partes do mundo, a violência ocorre no ambiente da criança. O abusador a conhece e a manipula emocionalmente. No meu caso foi assim. Ele me dava coisas e prometia outras.

É um mecanismo muito perverso, porque o agressor faz você se sentir especial. Tão especial que faz o que quer com você. Assim, a vítima chega a pensar: “Sou especial, porque fui escolhido entre outros.” Isso também faz a vítima pensar que é cúmplice do abuso, como se tivesse culpa em ter atraído a atenção para si.

♦ Então há uma inversão de papéis?
♦ Sim, e isso nos atormenta por muito tempo. Além do ressentimento e da raiva, a culpa é o pior sentimento que fica após o abuso.

♦ Que consequências psicológicas decorrem de um abuso? Como isso repercute no êxito ou fracasso na vida adulta?
♦ As consequências são muitas e terríveis. Não se pode generalizar porque, como seres humanos, somos diferentes e únicos. Porém, em geral, o abuso pode gerar baixa autoestima e distúrbios, como depressão e problemas sexuais. Meninos e meninas também tendem a reagir de forma distinta. Ao crescer, o caminho mais próximo para um garoto abusado é a homossexualidade e o vício em drogas; e para uma garota é a dificuldade de formar uma união estável ou de não conseguir viver com prazer sua sexualidade.

♦ O que os pais podem fazer para prevenir o abuso sexual infantil?
♦ Falando sobre esse problema e a questão da culpa. Eu também culpei meus pais pelo que aconteceu comigo. Eles não perceberam o que sofri e isso me marcou. Por um lado, questiono por que não cuidaram de mim, mas por outro entendo que dificilmente desconfiariam de alguém próximo, em quem confiavam.

Por isso, os pais devem criar vínculos com os filhos, nutrindo um ambiente de confiança, para que eles sem- pre abram o coração. Muitas vezes, a criança não sabe o que estão fazendo com ela e pode chegar a contar isso de forma indireta. Certa vez, tive um caso no consultório em que uma menina dizia: “Meu tio me faz palavras más.” A professora a corrigiu e lhe disse: “Não se diz me faz, e sim me diz.” Porém, investigaram e era como a menina dizia: o tio fazia coisas más com ela.

♦ Se isso ocorre, o que fazer?
♦ Cuidar da vítima é a primeira providência. É necessário levá-la a um centro especializado, ainda que o abuso não tenha envolvido contato físico. Um adulto,

por exemplo, que sente prazer em ver uma criança nua também é um abusador, mesmo que não lhe tenha tocado. Isso não é normal. É perverso sentir prazer tocando ou vendo o corpo de uma criança. Depois de cuidar da vítima, os pais precisam denunciar o abusador, por mais difícil que seja acusar um familiar ou amigo próximo. No entanto, é preciso enfrentar o problema e afastar o abusador

♦ Como é possível superar um abuso?
♦ O importante é pensar não apenas a partir de uma perspectiva psicológica, mas espiritual. Há angústia e tristeza que contaminam todas as dimensões do ser. Por isso, se agregarmos o aspecto espiritual, tudo muda. A saída é espiritual. E por onde passa? Pelo perdão. Assim é possível viver uma vida cheia de paz. O perdão é incompreensível e grandioso. Mais do que uma palavra, é uma atitude; é dar-se conta de quem é verdadeiramente seu inimigo.

Durante muito tempo, culpei a Deus e Lhe perguntei onde Ele estava quando tudo isso me acontecia. Para mim, teve efeito curativo pensar que Deus sofria mais do que eu. E sofria mais porque Ele podia impedir, mas o permitia por alguma razão que eu desconhecia. Anos mais tarde, compreendi que estamos imersos em um grande conflito cósmico entre o bem e o mal. Quem me feriu não é mais que um instrumento nas mãos do diabo. Sei que é difícil entender, mas meu abusador também necessita de ajuda e pode ser restaurado. Se Deus me perdoou por tudo o que fiz como pecador, também pode perdoar meu abusador. E, com a ajuda divina, eu também posso fazer isso.

Pablo continua me olhando fixamente. Ele se emociona, chora e sorri, quase tudo ao mesmo tempo. O caminho percorrido causou-lhe marcas profundas. Hoje, essas marcas são medalhas de vitórias. Graças a elas e a Deus, podem resgatar outros desse inesperado e injusto abismo que é o abuso sexual infantil.

Não consigo continuar olhando para ele sem que uma lágrima caia. Seu relato é comovente. “Se me perguntar se essa tragédia pode ser superada, eu digo que sim, pode ser superada.” Seu sim é um sim pleno, contundente. Parte de quem sabe o que diz.

PABLO ALE é jornalista, pastor e mestre em Literatura. Ele trabalha como editor de revistas na Asociación Casa Editora Sudamericana, em Buenos Aires, Argentina

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