Quando falamos em corpo, em intimidade, pensamos, sem nos darmos conta, em limites e proteções que foram adquiridos e construídos durante o processo de desenvolvimento, através da educação e dos valores que recebemos. Os adultos têm noções claras de onde se permitem ser tocados, acariciados e por quem eles desejam ser tocados. Faz parte do que os psicólogos chamam de conquista da autonomia. Qualquer situação em que seus limites sejam ultrapassados sem seu consentimento é considerada abuso.
Ao contrário do adulto, a criança não possui essa noção e esse conceito. Ela depende de sua família e de pessoas de sua confiança para que, através de relacionamentos e experiências de vida estáveis e harmoniosas, tenha uma imagem positiva de si mesma, elabore uma percepção sadia de seu corpo, conseguindo assim, construir sua identidade e alteridade equilibradas.
Porém, como sabemos, nem sempre é isso que ocorre. As crianças e adolescentes, por sua condição de vulnerabilidade e dependência, acabam sendo vítimas de diversas formas de abusos, como emocional, físico e sexual. Quando uma atitude tira do indivíduo a condição de humano e o trata como coisa, impedindo ou anulando a atividade e a fala dele, essa ação é de violência. É o uso da força contra a natureza de alguém, é coagir, constranger, inclusive brutalizar.
De todos os tipos de violências a que as crianças e adolescentes estão expostos, o abuso sexual representa uma grande tragédia na vida deles e produz destruição da estrutura psicológica comprometendo-a em diferentes aspectos. Esse tipo de violência poderá implicar numa vivência de solidão intensa e constituir um nível-limite para a continuidade do funcionamento psíquico, uma vez que afeta o ponto mais pessoal e básico de sua identidade: o corpo.
O abuso sexual se define por qualquer conduta sexual mantida entre um adulto e um menor. A ação não se limita apenas a um ato isolado, mas pode incluir contato físico, carícias, o uso da criança como objeto de estímulo sexual, imagens pornográficas, relação sexual ou tentativa da mesma e incesto. O abuso sempre envolve uma questão de poder: um indivíduo que impõe seu desejo ao outro.
Na maioria das vezes, os abusadores são homens e, em geral, amigos ou parentes da vítima. Uma grande parte das vítimas femininas conhece os agressores, dos quais quase a metade pertence à família. Esse fato nos ajuda a compreender por que é difícil para as crianças falarem da violência que estão sofrendo, uma vez que existe o medo de serem castigadas pelos pais ou sofrerem ameaças por parte do abusador. Esse silêncio envolve culpa, medo de não acreditarem nela, medo de destruir a família; isso quando o silêncio não parte da própria
mãe que tem conhecimento do ocorrido, mas se cala, por medo de perder a condição em que vive, por depender financeiramente ou mesmo emocionalmente do abusador.
No caso do incesto, a tragédia é maior, com consequências em longo prazo e mais marcantes do que as provindas de abuso sexual extrafamiliar. Isso porque o ato se produz em um ambiente familiar que de alguma forma o legitima.
Estamos falando de um pai perverso, que não consegue reconhecer as emoções e pensamentos do outro, percebendo apenas seu mundo mental. Pode comportar-se em muitas circunstâncias de forma pacata e moralista ao mesmo tempo em que, dentro de casa, usa o poder paterno para coagir, se satisfazer sexualmente e continuar impune.
Por todo o tempo em que ocorrer o abuso, “essas crianças passarão por estados de solidão, impotência e culpa”. O fato de, em muitos casos, elas terem que conviver com o abusador causa uma situação de tensão e ansiedade constante, uma verdadeira sobrecarga emocional.
Os danos sofridos não se limitam apenas ao período do abuso. O trauma que a criança vivencia no abuso sexual, em especial na relação incestuosa, altera sua história psíquica, tendo efeitos que podem variar, mas sempre estarão presentes.
Como fica claro, o peso emocional que essas vítimas carregam vai além do abuso em si e faz com que o sigilo sobre o acontecido seja guardado e carregado por uma grande parte da vida, muitas vezes sem ser compartilhado com ninguém. Esse silêncio é vivido como uma violência dobrada. Se, ao passar por um processo de luto ou mesmo um acidente, as vítimas podem contar com a solidariedade e o apoio material das pessoas e, com esse auxílio, são ajudadas a elaborar o acontecido, no caso do abuso sexual, isso não se realiza. Ele é um acontecimento isolado e ocorre em um contexto de solidão e vergonha, sem acompanhamento ou com um espectador silencioso com medo de se envolver. Aqueles que passam pela situação de abuso podem vivenciar três tipos de sentimentos (Fucks):
1) Sentimento de desamparo: A necessidade de ser amado e protegido faz parte da natureza humana. Se essa necessidade sofrer um impedimento e, de forma tão traumática, deixar a vítima impotente frente ao perigo, é necessário que ela tenha a ajuda adequada para que esse sentimento não gere outros, tais como medo, tristeza e ansiedade.
2) A sensação de estar em perigo permanente: Essa sensação está relacionada à dificuldade de integrar, na própria vida, um acontecimento para o qual não se estava preparado e que está acima da possibilidade tolerá-lo devido à sua característica inesperada e desconhecida.
3) Sentir-se diferente dos outros: As marcas do abuso que as vítimas sofreram podem atuar por longo tempo em diferentes áreas da vida. Elas geralmente acreditam que são as únicas a padecer desse tipo de dor. A impossibilidade de transformar essas lembranças marcadas no corpo, no psiquismo e na vida gera sentimentos de humilhação, desprezo, perda de esperança e isolamento.
No início, a ação abusiva é sentida como uma intrusão. Em um segundo momento, surge uma reação que não consegue discriminar-se dos estímulos. É uma espécie de submissão forçada do corpo à agressão vivida. Essa sujeição gera desconcerto e humilhação, e é acompanhada de confusão emocional. Não há como fazer um registro dessa experiência na mente. A vítima tenta se convencer de que o abuso não aconteceu. Em situações de incesto, essa dificuldade é acentuada quando a família nega o acontecido.
Na maioria dos casos, a história do abuso aparece muito tempo depois do ocorrido (meses ou anos), quando a vítima consegue contar para um amigo, um familiar ou alguém de sua confiança – ou quando se percebe algo destoante em seu comportamento.
Alguns indicadores mais observados em crianças e adolescentes vítimas de abuso:
Indicadores físicos:
- Dores, golpes ou feridas na região genital ou anal;
- Roupa interior rasgada, manchada e ensanguentada;
- Dificuldade para andar ou sentar-se.
Indicadores Comportamentais:
- Irritabilidade;
-Transtornos alimentares;
-Mentiras;
-Crueldade contra os outros e os animais;
-Tristeza profunda e desesperança;
-Desconfiança das figuras significativas;
- Problemas de relacionamento;
- Diminuição do rendimento escolar;
- Transtorno do sono;
- Depressão;
- Ideias suicidas.
Indicadores na esfera sexual:
- Recusa de beijos, carícias e contato físico;
- Comportamentos sedutores, especialmente em meninas;
- Compreensão precoce da sexualidade e atividades sexuais inadequadas;
- Indício de atividades sexuais.
Os indicadores sexuais são os que mais estão relacionados com a experiência traumática. Porém, eles devem ser analisados em conjunto e de forma geral, uma vez que não se pode estabelecer a conexão entre um sintoma apenas e o abuso.
Consequências e sequelas emocionais:
Uma criança muito pequena pode não ter consciência do abuso no início. Mas ela pode verbalizar de alguma forma que aconteceu algo entre ela e o adulto que cometeu o abuso.
A maior parte das vítimas sofre consequências emocionais. O nível do impacto psicológico vai depender do repertório emocional e da estratégia de enfrentamento de que a vítima disponha. As mais observadas são: reações de ansiedade e depressivas, de culpa, vergonha, dificuldades de aprendizagem e de socialização, assim como comportamentos mais agressivos.
Em longo prazo, os problemas mais observados são alterações no campo sexual: disfunções sexuais e dificuldades na obtenção de prazer.
Na esfera emocional, a depressão, a baixa autoestima e um sentido ou percepção distorcida de si mesmo. Isso leva a pessoa a se sentir isolada e marginalizada. Nas relações que estabelece, existem dificuldades em estabelecer limites e controlar os afetos. Em alguns casos, o abuso afeta todas as áreas da vida do indivíduo, atuando como uma espécie de organizador e usurpador do lugar principal nos acontecimentos da vida.
O impacto do abuso na vida cotidiana exige delas uma reavaliação em sua maneira de viver, onde passam a sobreviver apesar de. Aprendem a não se defender ao preço de um empobrecimento emocional que interfere em todas as áreas da vida.
O fim desse segredo se dá através da denúncia que pode significar o fim do pacto de silêncio imposto pelo abusador à sua vítima. É a possibilidade de voltar a viver, e não apenas sobreviver, a uma tragédia pessoal.
Bibliografia:
L.B.Fuks-Consequências do Abuso Sexual Infantil. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/85826742/CONSEQUENCIAS-DO-ABUSO-SEXUAL-INFANTIL. Acessado em 06/2017
Andrea Rojas
Formada pela Universidade Federal de Uberlândia
Mestre em Psicologia Clínica – Universidade São Marcos
Ex-professora do curso de Psicologia do Unasp-SP
Participante voluntária da TV Novo Tempo
Psicóloga Clínica na cidade de Belo Horizonte