A marca não cicatrizada

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A marca não cicatrizada

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Se não for submetida ao tratamento adequado, a criança pode carregar marcas até sua fase adulta. Foto: Amanda Flores

Marcela sofreu abuso sexual por um membro da família. Anos se passaram, mas até hoje ela sofre com as consequências da agressão.

Vinte e cinco anos de vida. Porém, muita história para contar. História que poderia não existir. Marcela* sofreu abuso entre os oito e dez anos de idade. O agressor? Alguém que ela menos esperava: seu tio, com cerca de 45 anos – a pessoa que a tratava bem e sempre lhe dava muitos presentes. Devido a sua mãe ter muitas atividades para realizar e sua casa ser um pouco distante, Marcela sempre ficava com a irmã mais nova na casa da tia. Era a tia preferida, os primos mais próximos... e um tio que ela nem imaginava.

Em uma tarde de sábado, mais uma vez a casa dos tios era o destino. A tia da garota estava na rua conversando com uma vizinha, juntamente com a irmã de Marcela. A menina ficou em casa com alguns amigos dos primos e o tio. Em poucos minutos, as pessoas foram indo embora, até que ficaram somente Marcela e o tio. A menina ficou debruçada sobre a janela olhando para a rua, onde estavam a tia e a irmã. Até que foi surpreendida com carícias que nunca havia recebido antes. E o silêncio da garota foi exigido pelo tio naquele momento.

Abuso verbal, abuso sexual, ameaças, tudo foi se intensificando daquele dia em diante. Muitas visitas àquela casa ainda vieram depois daquele dia. E toda vez que Marcela ficava sozinha com o tio, a menina tentava passar o tempo na rua até a tia retornar. Porém, não era sempre que conseguia. Na maioria das vezes, permanecer muito tempo fora de casa gerava algumas consequências para Marcela. O tio contava à mulher que a menina havia passado o tempo todo na rua, e a tia, por sua vez, “dedurava” Marcela para a mãe. Aí vinha a surra.

Foram quase dois anos sem ninguém desconfiar de nada, mesmo com a mudança de comportamento da garota: simpatia, alegria e espontaneidade foram perdidas. Passou a ser tachada pela família de mal-educada por não cumprimentar ou conversar com o tio. O abuso durou até poucos meses antes de completar dez anos. Com o tempo começou a ter noção das coisas e já tinha mais resistência para evitar os momentos que poderiam causar o fato.

Marcela nunca falou para ninguém. Por causa das ameaças do agressor, dizendo que seus pais não entenderiam e que nunca iriam amá-la se ela contasse, ela sempre teve medo de revelar o que se passava.  A única vez que tentou dizer à mãe foi em vão; não teve ajuda ou palavras de conforto da parte dela. Pelo contrário, levou a culpa do ocorrido e não foi levada a sério. A partir desse dia, o relacionamento entre elas mudou completamente, e tiveram um difícil convívio por 11 anos.

A psicóloga Alessandra Silva, que é especializada em violência doméstica praticada contra crianças e adolescentes, explica que é importante o apoio da família quando a criança revela esse tipo de situação. Isso traz segurança e demonstra que ela não está sozinha para enfrentar o problema. “É importante saber que crianças raramente inventam situações de abuso sexual”, ressalta.

 

As marcas deixadas -  No caso de Marcela, os abusos cessaram, porém as consequências ficaram. Por ouvir palavras tão duras da mãe, ao ponto de ser inferiorizada, ela até chegou a ser a melhor aluna da classe, a fim de trazer reconhecimento e orgulho. Somente aos 16 anos a situação se agravou. Ela ficou mais depressiva, melancólica e se afastou dos amigos, o que resultou em uma queda brusca em seu rendimento escolar. A orientadora educacional percebeu a mudança de comportamento, porém só teve certeza de que algo estava errado ao analisar uma redação sobre abuso. Através dela, a professora pôde perceber que, mesmo implicitamente, a aluna passava para o papel a sua realidade.

 

Com isso, Marcela foi obrigada a tentar, mais uma vez, explicar todo o ocorrido para a mãe, que ficou de revelar o caso ao pai. Só anos mais tarde Marcela ficou sabendo que o pai desconhecia do assunto. Então Marcela resolveu ela mesma expor a situação, porém, depois desse dia, nunca mais ele tocou no assunto.

 

A vida continua - Ao longo dos anos, Marcela teve muitas recaídas e pioras em seu comportamento. Sua situação se agravava cada vez mais por ter que conviver com o agressor, já que ele faz parte da família. Era um incômodo acompanhado de um peso com sensação de culpa e inferioridade. Nada lhe fazia mudar de ideia.

 

As coisas melhoraram depois que começou a fazer terapia. Começou tarde: apenas aos 21 anos. Chegou a interromper o tratamento, que só voltou a ser feito aos 24 anos quando foi estudar em outra cidade. A terapia ajudou na melhora do relacionamento com a mãe, e aos poucos Marcela sente que as coisas est��o se encaixando. Mas ela acredita que nunca irá ficar cem por cento boa. Sente-se insegura, tem pesadelos, não consegue ficar sozinha em algum lugar, pois isso remete a algo ruim. E ela ainda tem um certo bloqueio em relação à imagem masculina.

 

“Os abusos jamais são esquecidos, mas é possível ter o sofrimento minimizado através da escuta especializada”, garante a psicóloga.

 

Levar o caso à tona

 

Alessandra explica que o abuso, em todos os seus aspectos, não era algo falado há 10 anos por meios de comunicação, em escolas ou universidades. Porém, mesmo hoje havendo muita informação e debates sobre o tema, ainda não há o número suficiente de denúncias. Ela acredita que os números cairão se o tema for trabalhado de forma preventiva com as crianças e adolescentes. Isso se pode conseguir ao fazê-los entender a diferença entre um carinho e um toque abusivo. Assim, eles podem ter segurança de contar a alguém para se tomar uma atitude.

 

Marcela nunca denunciou o agressor por causa da família. Até hoje, apenas seus pais e a irmã sabem o que aconteceu. Ainda assim, ela acredita que seja necessário denunciar, mas muitas vítimas não o fazem devido ao julgamento e preconceito que sofrem por parte das pessoas. “Somos tratados como meras vítimas ou como anormais. E, às vezes, as pessoas passam anos carregando o mesmo peso que eu carreguei por não se sentirem seguras ou amadas o suficiente para dividir isso com alguém”, desabafa. [Equipe ASN, Jéssica Guidolin]

*Nome fictício