Ela tem apenas 36 anos, é casada e tem duas filhas, mas já tem dado uma grande contribuição para os estudos sobre prevenção e tratamento de drogas no Brasil. Sua tese de doutorado, defendida em 2006, revelou que o papel dos grupos religiosos na recuperação dos dependentes químicos é o acolhimento e acompanhamento dos usuários.
Desde então, a doutora Zila van der Meer Sanchez tem se tornado uma referência nacional no assunto. Ela é professora do curso de Medicina e da pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), uma das escolas mais importantes do país, e pesquisadora do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid).
Seu interesse pelo drama das drogas vai além da academia. Há quase dez anos, ela atua voluntariamente numa ONG que atende mais de 500 crianças e adolescentes e oferece anualmente educação na área de saúde preventiva para 70 menores em situação de risco social da zona sul de São Paulo. É com base em seus estudos e experiência que ela concedeu esta entrevista sobre um assunto que preocupa cada vez mais as famílias.
QS: Por que você estudou esse tema?
Zila: Na época, havia muita divulgação na mídia sobre o trabalho dos religiosos, especialmente neopentecostais, na recuperação de dependentes químicos. Era possível observar que os usuários que buscavam o serviço público de saúde geralmente não continuavam o tratamento e reclamavam da demora no agendamento de uma consulta; enquanto os que procuravam os grupos religiosos permaneciam e até se tornavam adeptos daquela religião. A diferença parecia estar no atendimento e no interesse pelo dependente. Tínhamos também muitos estudos acadêmicos quantitativos mostrando a relação entre a prática religiosa e menores índices de consumo de drogas, mas poucos trabalhos que tentassem explicar como acontece esse processo ou por que a fé é um fator importante na prevenção ao uso de drogas. Por isso, optei por uma metodologia qualitativa, baseada na observação da atuação de religiosos e em entrevistas com 120 pessoas, no Brasil e na Espanha, que procuraram auxílio desses grupos. Os estudos quantitativos são mais indicados quando você entende bem um fenômeno. Não era o caso do meu objeto de estudo. Eu precisava ouvir a história das pessoas.
QS: Quais foram suas conclusões?
Zila: As pessoas que procuram ajuda para deixar as drogas em grupos reli- giosos não fazem isso por uma questão de fé, mas de desespero. Geralmente, elas pedem socorro quando estão no fundo do poço e possuem pouca cons- ciência de tudo o que envolve fazer parte daquela organização. Algumas recorrem às igrejas porque se frus- traram com outros tratamentos ou por causa da insistência de familia- res que disseram que aquilo funcio- na. Portanto, o que faz diferença no primeiro momento é o acolhimento. Num segundo momento, quando têm acesso às informações e experiências daquela religião, é que eles desenvol- vem a fé. Muitos dos entrevistados dis- seram que foram recebidos como se fossem a pessoa mais importante do mundo. Por isso, nessa fase inicial, a frequência aos grupos é intensa, cerca de quatro a cinco vezes por semana. E mesmo quando existe recaída, o que é frequente, o grupo costuma estender a mão e ajudar na recuperação. O pro- cesso é lento, mas é consistente.
QS: Qual elemento religioso se mostra eficaz na prevenção: o rito, a vivên- cia comunitária ou a doutrina?
Zila: Analisei três grupos religiosos: evangélicos (maioria neopentecostal), cató- licos e espíritas. Apesar de possuírem motivações e ensinos distintos, o que é comum entre eles é a intenção de cola- borar para que o dependente químico se torne abstêmio e tenha seu convívio social restaurado. Os evangélicos enfati- zamqueéaféquecuraequeousuário precisa entregar o problema dele para Jesus. Costumam se reunir em células (pequenos grupos), ler a Bíblia, incenti- var a ajuda mútua e recorrer à expulsão de demônios. Os católicos, por sua vez, utilizam grupos de ajuda mútua e recur- sos terapêuticos como a confissão e a participação na missa e na eucaristia. Eles atribuem o sucesso do tratamen- to a algo concreto: o auxílio de pessoas ou grupos. Já os espíritas salientam que o tratamento espiritual não dispensa o tratamento médico. Para eles, passes espirituais, a busca por reforma ínti- ma e a prática da caridade são fatores importantes no tratamento. Meu estu- do e outras pesquisas internacionais têm mostrado que a confissão religiosa não é o fator mais importante, e sim a convivência numa comunidade religio- sa. Em resumo, o tratamento que leva em conta a espiritualidade do depen- dente funciona da seguinte maneira: ele é acolhido pelos religiosos e recebe um suporte social por causa da coesão do grupo; ouve exemplos de sucesso e começa e se consolar com a possibilida- de de poder reconstruir a própria vida; é aí então que se desenvolve a abstinên- cia e a restauração do indivíduo.
QS: Talvez os mais desconfiados e críticos poderiam sugerir que esses ex-usuários trocaram a dependên- cia química pela religiosa. Você enxerga dessa maneira?
Zila: Não. O novo comportamento que eles desenvolvem, por mais apegado que seja à religião, não poderia ser classifi- cado como dependência. Não há sinto- mas de dependência como síndrome de abstinência, tolerância, fissura, perda de vínculos sociais ou de autocontrole, entre outros. É verdade que algumas igrejas fazem chantagens emocionais para que alguns não se afastem do gru- po, como dizer que o diabo vai levá-los a ter novas recaídas se eles deixarem a igreja. Porém, ainda que essa relação fosse caracterizada como algum tipo de dependência, os prejuízos pessoais e sociais seriam menores do que os que são causados pelas drogas.
QS: Como você vê os tratamentos exclusivamente espirituais?
Zila: Particularmente, sou contra. Se exis- tem recursos científicos disponíveis que podem diminuir o sofrimento do dependente químico, principalmente na fase inicial do tratamento com as crises de abstinência, por que não utili- zá-los? Creio que não é preciso escolher entre um e outro. O tratamento médico e o espiritual são complementares, e a eficácia desse processo é maior quando os dois são utilizados juntos. É isso que a literatura acadêmica tem mostrado.
QS: Como as organizações religiosas podem ser mais assertivas nessa intervenção?
Zila: Penso que, basicamente, de duas maneiras. Hoje o Brasil tem uma rede maior de Centros de Atenção Psicosso- cial Álcool e Drogas (CAPS AD) do que quando defendi minha tese, em 2006. É importante que os líderes religiosos conheçam esse serviço gratuito do nos- so sistema de saúde e o indique para os dependentes que os procuram. Igre- jas e CAPS AD podem trabalhar jun- tos. Outro ponto importante é que os grupos religiosos busquem capacitação técnica para oferecer um atendimen- to mais completo, acolhedor e menos traumático para o usuário. Um curso gratuito e a distância é o Fé na Preven- ção (fenaprevencao.senad.gov.br).
QS: Entre os fatores de proteção contra o vício, por que uma família ajusta- da aparece em primeiro lugar, antes mesmo da religião?
Zila: Porque a família é algo concreto. É o ambiente diário em que o jovem aprende valores, modelos de socializa- ção e a amar e ser amado. A influência da família é mais importante do que a da religião porque, via de regra, é a família que ensina ou não uma religião para os filhos. Até crescerem e elabora- rem as próprias convicções, as crianças seguem a religião dos pais. Porém, vale destacar também que as famílias que são religiosas tendem a ser mais equili- bradas. Os pais são mais atenciosos com os filhos, menos violentos, e o consu- mo de drogas nesses lares é evitado.
QS: O que sua experiência numa ONG voltada para adolescentes em situa- ção de risco mostrou ser eficaz na prevenção?
Zila: No ano em que defendi minha tese, decidi mudar o foco do traba- lho voluntário que já exercia em uma ONG, no bairro de Americanópolis, em São Paulo, que na época atendia 350 crianças e adolescentes. Iniciei um programa de prevenção ao uso de drogas com 35 adolescentes de 12 anos. A região é conhecida pela vulnerabilidade social e o tráfico de drogas. Nesse trabalho, temos toma- do como base projetos europeus e norte-americanos bem-sucedidos na prevenção ao uso de drogas. A proposta do programa, intitulado PHAVI (Programa de Habilidades de Vida), é de desenvolver habilidades sociais e pessoais, como assertividade, cooperação e autoconfiança, por meio de dinâmicas de grupo semanais em sala de aula. Faz parte da abordagem também oferecer informação honesta sobre as drogas. Isso inclui falar dos prejuízos dos entorpecentes, sem deixar de reconhecer que muita gente consome essas substâncias porque proporcionam prazer. Ainda não mensuramos cientificamente os resultados desse projeto porque nossa amostragem de participantes é peque- na, mas recebemos vários elogios das famílias agradecendo a mudança de comportamento dos filhos.
QS: Qual é o panorama do consumo de drogas no Brasil?
Zila: O último estudo de dimensão nacional feito com adolescentes de diversas faixas etárias é de 2010. A cada levantamento, temos visto a queda do consumo de cigarro, em todas as faixas etárias. Existe também baixa prevalência do uso de crack, dado que contraria a impressão que é passada pela mídia. Os inalantes são mais consumidos entre os jovens do que a maconha, por exemplo. E a cada dia surgem novos inalan- tes, com efeitos parecidos aos da cola de sapateiro, lança-perfume, esmal- tes e tintas. Mas a droga mais con- sumida é lícita e é tratada pela mídia e por nossas políticas públicas como se fosse uma substância qualquer: o álcool. Entre os adolescentes de 10 a 13 anos o consumo tem diminuído, enquanto entre os de 17 e 18 anos tem aumentado. O problema é que as cervejarias são os grandes anuncian- tes da TV aberta e vários estudos têm apontado a influência desse tipo de publicidade na iniciação dos adoles- centes no consumo de álcool.
QS: Existe esperança para os dependen- tes químicos e suas famílias?
Zila: Já existem recursos científicos e espi- rituais para ajudar essas pessoas na sua recuperação. O tratamento é longo, lento e exige persistência do usuário e de seus familiares. Mas é possível.